O Fim de uma era
Antes responsável pelo abastecimento integral do Nordeste, o Complexo de Paulo Afonso tem papel secundário na região, impactado hidrologia e avanço de outras renováveis, como eólica e solar
“Paulo Afonso/Se ligarem mais um fio/Você ilumina o Rio/São Paulo e Toda a nação”. O baião-exaltação “Paulo Afonso”, de Gordurinha, gravado em 1959 por Ary Lobo, não foi o primeiro sucesso homenageando o aproveitamento hidrelétrico em larga escala da cachoeira de Paulo Afonso, entre Bahia e Alagoas. Em 1955, Luiz Gonzaga já lançara, com o mesmo título, a parceria dele com Zé Dantas em que homenageavam a inauguração, em janeiro daquele ano, da usina “Paulo Afonso I” (PA I), de 180 MW – a primeira das cinco hidrelétricas que formariam o Complexo Paulo Afonso, de capacidade total de 4.279,6 MW e que é o terceiro maior aproveitamento hidrelétrico exclusivamente brasileiro, atrás apenas de Belo Monte (11.233 MW) e Tucuruí (8.000 MW).
Apesar da grandiosidade na época, o complexo opera, hoje, basicamente duas usinas. Na quarta-feira (22/5), foram gerados apenas 780,45 MW, concentrados na usina Paulo Afonso IV, segundo dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS). O volume corresponde a 18,24%% da capacidade nominal do complexo e a 7,16% da carga demandada pela região Nordeste naquele dia, de 10.903 MW. As usinas 1, 2 e 3 do complexo, além da “Apolônio Sales” (Moxotó), estão paradas desde 2014, com o giro esporádico e alternado das turbinas apenas para tarefas de manutenção.
O arrefecimento da sua principal atividade econômica preocupa o município baiano de Paulo Afonso, de 120 mil habitantes, hoje em busca de novas vocações.
No final da década de 1970, a região Nordeste podia ser integralmente abastecida por Paulo Afonso. Em 1999, de acordo com o ONS, a carga média do Nordeste era de 5.663 MW, menor do que a capacidade instalada de Paulo Afonso somada à vizinha hidrelétrica Luiz Gonzaga (Itaparica), que era de 5.759,2 MW.
Com Sobradinho, a montante, e Xingó, a Jusante, a capacidade instalada das usinas no rio São Francisco, na área que tem o epicentro na cidade Paulo Afonso, concentra turbinas capazes de gerar a plena carga 9.971,5 MW. O problema é que não há água no São Francisco para girar todas essas turbinas, na hipótese de elas estarem prontas a operar simultaneamente.
O somatório da seca severa que atingiu a bacia do São Francisco a partir de 2012 – que ainda persiste em escala menor -, a demanda por outros usos da água do rio e a crescente opção por fontes alternativas e até mais limpas que a hídrica do ponto de vista ambiental, especialmente a eólica, mudou radicalmente o mapa da produção energética nordestina. No mesmo dia 22/5, a geração eólica foi de 4.238 MW, mais de 38,9% da carga total. Já a geração hidrelétrica do Nordeste no mesmo dia foi de apenas 2.503 MW, já computados 188,83 MW gerados pela usina Presidente Castelo Branco (Boa Esperança), no Piauí.
De acordo com dados da Chesf, o pico de produção do Complexo Paulo Afonso foi em 2007, com 20.006.903 MWh. O diretor de Operações da Chesf, João Henrique Franklin, justifica a queda brusca na produção em função da hidrologia desfavorável da bacia do rio São Francisco a partir de 2013. “Desde 2013, a bacia do rio vem apresentando um quadro hidrológico bastante desfavorável, que tornou necessária a flexibilização, em caráter temporário, da vazão mínima de restrição a ser praticada pelos reservatórios de Sobradinho e Xingó”, explica.
Essa situação na redução gradativa da vazão de restrição mínima de 1.300 m³/s até chegar a 550 m³/s, ocasionando diminuição na geração de energia elétrica fornecida pelas usinas operadas pela Chesf. Além disso, optou-se por manter fluindo o rio apenas onde se localiza a usina Paulo Afonso IV por apresentar melhor rendimento em relação às demais usinas do complexo. Ou seja, utiliza menos água para gerar a mesma quantidade de energia elétrica.
Papel secundário
Em termos de custos e de remuneração, em 2018, as quatro usinas que estão paradas tiveram custo de manutenção total de R$ 12 milhões. Este valor, no entanto, não representa prejuízo para a Chesf, uma vez que, desde 2013, com a Lei nº 12.783, as usinas estão no regime de cotas estabelecido para as hidrelétricas que anteciparam a renovação de suas concessões. Com isso, recebem uma remuneração fixa mensal, gerando ou não, desde que estejam disponíveis para atender às necessidades do Sistema Interligado Nacional (SIN).
Na prática, o complexo Paulo Afonso, com exceção da usina IV, já opera como fazem as termelétricas, ligadas apenas quando requisitadas. A diferença é que nas hidrelétricas nordestinas, dependendo do momento, pode não haver combustível (água) para acioná-las. Embora tenha como prioridade atender outras demandas mais essenciais, como o abastecimento humano e animal, a política adotada pela ANA, em comum acordo com outros órgãos e entidades intervenientes, busca o enchimento dos reservatórios de Três Marias (MG) e Sobradinho (BA) a fim de contribuir também para viabilizar o acionamento das usinas de Paulo Afonso quando houver necessidade.
O diretor geral do ONS, Luiz Eduardo Barata, entende que o futuro das usinas hidrelétricas do São Francisco é inverterem o papel com as térmicas, hoje moduladoras de um sistema que tem na base as hidrelétricas. Embora as hídricas continuarão por muito tempo atuando como base, uma vez que ainda representam mais de 60% da capacidade de geração total do país, o executivo acredita que, no Nordeste, o cenário pode mudar à medida que o gás do pré-sal assegure combustível para as térmicas. A tendência, diz ele, é que o papel de modulação para a intermitência das eólicas fique com as hidrelétricas. Barata prevê que essa reversão comece a ocorrer entre 2023 e 2024, quando vencem as concessões das térmicas a óleo, mais poluentes.
Essa avaliação do diretor do ONS é consensual. José Henrique Franklin, da Chesf, acredita que as usinas operadas pela companhia no rio São Francisco podem ser solução viável para esse sistema de back-up.
“[A Chesf] não vislumbra o desmonte das usinas do Complexo de Paulo Afonso. No entanto, com a crescente expansão da geração eólica e solar na matriz energética da região Nordeste, se faz necessária a implementação de um sistema de geração firme de ‘back-up’ e de equipamentos que possam fazer a regulação do sistema elétrico e as hidrelétricas operadas pela empresa podem ser essa solução”, observa.
O desafio, entretanto, é definir uma base regulatória para a remuneração pela prestação deste tipo de serviço pelos agentes de geração, diz o executivo.
Para José Almir Cirilo, professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e ex-secretário de Recursos Hídricos e Energéticos de Pernambuco, hoje, o país já dispõe de novas formas de geração de energia, como a eólica e a solar, mas não é possível criar soluções para “gerar água”, o que coloca a energia produzida pelas hidrelétricas do São Francisco como recurso de reserva.
“Há 20 anos era impensável dispensar o São Francisco da geração de energia. Com a revolução eólica, mesmo não sendo uma energia firme, é possível guardar a hidráulica”, avalia.
Há ainda o papel da energia solar no futuro da matriz elétrica nordestina, segundo Cirilo. “Alguns ainda pensam que é caro, mas começou custando R$ 270/MWh e agora está um pouco acima de R$ 100/MWh.”
No último dia 22, por exemplo, a geração solar no Nordeste foi de 252 MW, um pouco menos do que a capacidade nominal de hidrelétrica de Boa Esperança (272 MW).